Podemos dividir os seres humanos em duas categorias processuais extremas, certamente de uma maneira maniqueísta: as do mundo não-problemático e as do mundo problemático (excluímos as categorias intermediárias). Os habitantes do primeiro têm possibilidades permanentes de transformar o problemático no não-problemático graças ao seu capital de recursos vitais assegurados (alojamento, alimentação, emprego, acesso a serviços dignos de saúde e ensino, sociabilidade plural, etc.). Eles vivem uma cidadania. Mas já assim não acontece no outro mundo: neste, é necessário lutar duramente para garantir as bases reprodutivas da vida, cada dia é uma batalha dura no problemático, na busca sem tréguas de recursos vitais. Por isso os seus habitantes não vivem, mas sobrevivem prisioneiros da sua infra-cidadania . Pense-se, por exemplo, nas crianças da rua ou nos mendigos das romarias de sextas-feiras, que estão sempre "em cima da lâmina", como cantava o falecido cantor moçambicano Jeremias Ngwenha. No primeiro mundo temos estratégias de vida: portadores de um "lugar" e de um "próprio", os seus actores trabalham para criar, proteger e reproduzir as regras do bem-estar. No segundo mundo temos tácticas de sobrevivência: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um "próprio", eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica "contra-sociedade". Como diria Michel de Certeau, o que aí se ganha não se guarda. Esse é, finalmente, o mundo multidimensional da marronização : os seus actores não são escravos que se furtam, como outrora nas Américas, aos senhores e aos agressores, desorientando-os em caminhos e abrigos escusos, mas actores de um processo que os exclui, que os mutila e que por isso percute a afirmação de uma cultura rizomática, profundamente oxímora, na qual a alteridade se joga pelo contra espacial, identitário, ocupacional, bricolado e simbólico.
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