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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Jornal Online Moçambicano: O Sabor da ingratidão

Jornal Online Moçambicano
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O Sabor da ingratidão
May 7th 2012, 07:51


São quatro da manhã, o frio está no seu ponto mais alto, a cacimba embranquece tudo e quase nada se pode ver além do infinito branco espalhado pelo ar. As gotas que caem das folhas das árvores, ao tocarem em pele nua soam como agulhas ferventes penetrando em nosso corpo. Está frio! Mas é dia de trabalho, é segunda feira e Madala Ersnesto tem de se levantar e dirigir-se à baixa da cidade para tentar ganhar o seu pão. Lavar carros, enquanto na sua pequena banca estão expostos os produtos para serem comercializados (cigarros, fósforos, pastilhas, doces…) não é muito, mas dá-lhe algumas moedas. O suficiente para reforçar o caril, colorir o verde habitual aos finais de semana, ou melhor, ao domingo! Apesar da extrema pobreza, Madala Ernesto mantém-se culto, acreditando em sei lá o que, coisa que ele nunca chegou a perceber. Passou toda a sua vida pedindo dias  melhores, mas nada foi ouvido por quem é de direito aplicar poderes sobre -naturais entre os vivos. Tudo manteve-se na mesma, ou tendia a piorar. Aos seus 78 anos, com muito esforço Madala Ernesto carrega um sorriso nos lábios, apesar das decepções que a vida lhe pregou, os retrocessos constantes que se fizeram sentir no seu dia a dia, ele sempre manteve o seu sorriso exposto aos olhos de todos, nunca alimentou o ódio, rancor contra o seu próximo, sempre tentou ajudar a quem lhe solicitasse ajuda. Madala Ernesto é um desmobilizado de Guerra, pegou nas armas que deram independência a este pais, "A Perola do Índico". Muito se alegrou por saber que os meninos poderiam passar a dormir em paz, sem temerem explosões, balas perdidas, sem serem olhados com desprezo exposto nas expressões fisionómicas… Lutou para dar às crianças uma escola mais decente, um futuro melhor. Ele não teve opurtunidade de ir à escola, era muito difícel em seu tempo um negro frequentar uma escola, em uma universsidade já nem se fala. Mas ele acreditava que podia haver uma mudança, pois ''É melhor acender uma luz nas trevas, do que amaldiçoar a escuridão, uma vela acesa pode acender as de mais… "era nisso que ele acreditava. Então pegou nas armas e foi pelo mato dentro lutar contra os inimigos do povo Moçambicano… as súplicas ao poder divino estavam constantemente em seus lábios e em seu coração. Ao menos nisso ele foi atendido, a sua vida foi-lhe preservada e a bendita paz, alcançada! Só que depois disso, muitos que lutaram pela tal independência, foram esquecidos, não foram recompensados pelos seus esforços, pela sua bravura, entre os quais estava Madala Ernesto. Os meninos de ontem por quem ele lutou, são os senhores de hoje, que humilham e gracejam dele, da sua dita ignorância, sem saberem que ele é a história que primeiramente lhes foi apresentada sobre o seu nobre pais. Um livro vivo!
São quatro horas, é um dia como tantos, está frio de mais, mas é dia de trabalho e ele sabe que tem de se levantar. Ergue-se da sua esteira, com os pés rachados caminha sobre o cimento gelado da sua casa de chapa e zinco. Procura o fósforo para acender o candeeiro e dar alguma luz à casa enquanto fala baixinho para si próprio " Mulher, filhos… para onde se foram, quem me dera poder descansar um pouco mais enquanto Tu oh Mulher preparas a minha ida ao trabalho e dos meninos à escola" achado o fósforo, surge nas trevas da minúscula casa uma luz, o ponto de partida para os seus afazeres matinais! Madala acende o lume no pequeno fogão a carvão para fazer um chá e aquecer o seu corpo. Nem ousa lavar a cara…mergulha apenas o dedo na chaleira e com ele tira as ramelas nos cantos dos olhos. "hum, isto já ferveu, posso tomar o meu sagrado chá e pôr-me a andar, oh solidão, até a pobreza tem mais graça quando é compartilhada, ao menos pode-se lamentar em conjunto. Sara minha querida Mulher, que Deus te tenha! Danito meu neto ingrato que Deus te perdoe, na verdade entendo a tua miserável decisão de me ter abandonado. Eu seria um fardo velho e pesado para tu aturares, onde quer que estejas, em qualquer situação financeira que estejas, reza para que ela nunca retroceda, pois idoso rico nunca morre sózinho, caso não, vais acabar assim… do mesmo jeito que eu, abandonado! Assim como fizeste comigo" Suspira, serve o seu sagrado chá na chávena com mais de trinta anos, Sara adorava usá-la antes de dormir e ao amanhacer, foi presente de casamento de um branco que era o seu patrão. Era dono de uma mercearia que ficava no meio do seu povoamento. Sr Manuel Teixeira, um dos poucos que ficou em Moçambique após a Guerra de Libertação Nacional, isso pelo seu bom coração, o povo gostava dele e a muitos já havia ajudado em diferentes situações que a vida pregava a cada um, por isso, quando houve ataques  na zona do Boquisso, o povo foi um dos primeiros a fazer frente para que nenhum dano ocorresse ao forasteiro. Madala Ernesto teve sorte, falava Português, mas não sabia escrever, o que não foi problema, ele servia de intérprete na mercearia. Havia gente que nem falar nem escrever sabia.Os que falavam, muitos deles usavam o "Português corta-Mato". "Hei você Ernesto, pode kanelar(dizer) esse branco um sakinha de açúcar mulato(castanho)" e lá ia Madala Ernesto transmitir a mensagem ao seu patrão "patrão, ele quer um saco pequeno de açúcar, mas não aquele branco, aquele outro, mas não é branco, aquele parece o pôr do sol". Sr Manuel entendia logo e logo tratava de entregar o produto e corrigir ao Madala Ernesto. "oh Ernesto ,isto chama-se castanho, açúcar castanho". Ernesto agradecia a explicação e como sempre a guardava em seu dicionário interior.
Se todos os brancos fossem como o sr Manuel, ele nem teria pensado em pegar em armas. Mas quando chegou a guerra civil  Madala Ernesto teve de fugir, a guerra foi renhida, quase nada sobrou da antiga Mercearia e o Sr Manuel foi obrigado a fugir para o seu País. Foram 16 anos de sangue e gritos de dôr em Moçambique. Desta vez ele não entendeu o motivo da Guerra, antes eles lutavam contra um estrangeiro, mas depois era de irmão contra irmão, lutando por sei lá o quê. O pouco que havia em Moçambique foi destruído, até que se chegou a uma fase crítica, a fase do peixe e repolho, não havia mais nada no país além disso e isso era luxo. Durante os seus pensamentos Madala Ernesto saboreia o seu chá e sente o seu corpo com mais vida, pronto para mais um dia de trabalho. Após calçar os seus sapatos de trabalho, fartamente remendados por ele próprio, sim, por ele próprio. Quando não há carros para lavar, Madala Ernesto trabalha como sapateiro, concertando sapatos e chinelos de gente pobre, assim como engraxando! Pega no seu casaco, na sua mochila já velha, tão velha quanto ele e sai. Tranca a sua porta e inicia a marcha ao trabalho. Ops, ele esqueceu o candeeiro aceso. Volta a correr, abre a porta às pessas, apaga o maldito, dá uma palmada na sua cabeça e sorri para si mesmo enquanto pensa, "he he he he que seria de mim pah? Podia até não arder a casa, mas de noite estaria lixado, não iria ter petróleo, era para eu ver as coisas de que geito? Tipo coruja e fazer grummm, grummmm heheheh" sai de casa sorrindo, ele é feliz, embora sózinho ele dá alegria aos seus dias enquanto respira neste mundo ingrato. Sim, tão ingrato quanto Danito "esse tipo eu cuidei dele, pagar escola, nunca, mas nunca lhe mandei na escola sem lanche, sempre eu tinha de lhe dar algo, ou mandioca, ou bolacha, ou pão.. mas ele sempre levava alguma coisa, também estudava bem, isso me alegrava, então eu fazia de coração" dá passos sobre a terra molhada pela cacimba, envolve-se mais no branco dentro. "Não se vê nada, porra, até parece estou a andar nas nuvens, he he he imagina só um anjo velho e solitário como eu" pelo silêncio que ainda envolve a região ,ouve um galo a cantar e o Madala não se alegra com isso "Maldito bicho, quem te manda cantar? A esta hora você canta, imagina se eu confio em você, só vai me fazer atrasar no trabalho e voltar pra casa sem dinheiro e sem comida, equanto você tem as tripas cheias de farelo e ainda por cima um monte de galinhas para você marrimbar, caramba… "Este pensamento  "nervoso" faz-lhe apressar os seus passos, já se vê alguma vida entre os caminhos que o levam à cidade, é que o Madala vive no bairro do Chamanculo (um bairro suburbano da cidade de Maputo) alguns chapas (autocarros semi colectivos) já circulam entulhados de gente. O Madala olha e abana a cabeça "antes andar com os meus pés, que ser uma sardinha imóvel enlatada" as pessoas reconhecem o mal, sabem que ele não é nada bom para a sociedade, com tudo, entregam-se ao mesmo, sob pretexto de não haver alternativa" isso não faz sentido, há gente que gosta de ser maltratada, se isso lhes preocupasse de verdade, fariam uma revolta… não se pode mudar nada em um povo sem uma insatisfação completa" xiiiiii"o Madala buscou uma palavra que há muito não usava, ou melhor, nunca havia usado, mas já havia ouvido, "insatisfação"essa palavra já devia ter teias de ignorância, o madala sorri novamente para si próprio, até que não está tão mal assim, a sua cabeça ainda serve para algo, é tão triste ver gente menosprezando o seu saber, ele que faz parte da história de Moçambique, sim, pois ele lutou ao lado de vários politicos que hoje desfilam como se nunca tivessem ficado dias e dias sem tomar banho e a procurar gazelas entre o mato para poder comer algo, pois as Bases ficavam distantes, por vezes era preciso improvisar. Mas Madala Ernesto foi esquecido, uma vez foi ao Ministério do Interior reclamar os seus direitos. Uma senhora bonita porém mal educada lhe atendeu  depois o de ter olhado dez vezes de baixo pra cima. "O que deseja meu senhor?" o madala respondeu "Falar com o Ministro, ele foi meu camarada na Guerra de Libertação Nacional, estavamos juntos na base, na província de Gaza, ele pode não saber meu nome mais vai me conhecer bem quando me vir, eu hei-de lhe lembrar" a senhora soltou uma gargalhada e chamou os seguranças para expulsarem o pobre velho. "Tirem-me este demente daqui, seu tarado…"
O sol já se faz sentir, será um dia de calor infernal. A rua já se faz com vida, há meninos fardados indo à escola, os cobradores dos chapas iniciando os cantos habituais "Compone esquelene, Baixo, baixooo…"
Suas tristes e doces lembranças lhe acompanham ao lugar onde ganha a vida. Seus pensamentos e recordações são companheiros fiéis que irão lhe acompanhar até ao último dia em que der o último suspiro neste mundo. Apesar das decepções que a vida lhe pregou, o seu sorriso mantem-se sempre aberto. Madala Ernesto lava os carros com sorriso nos labios ,entoando baixinho uma remota canção, daquelas que se cantava pelo mato no campo de batalha, assim como depois da guerra:

"Não vamos esquecer o tempo que passou,
Não vamos esquecer o tempo que passou,
Não vamos esquecer o tempo que passou,
Quem pode esquecer o que passouuuu?

São canções do tempo em que o patriotismo estava balançando entre os corações Moçambicanos, no tempo do Pai Samora Machel. Que cerimónia linda a do dia 25 de Junho de 1975, quando foi declarada a Independência Nacional da Republica de Moçambique. Madala Ernesto estava entre os tantos, esperançoso. Havia lutado pelo país e esperava um trabalho decente e era algo que lhe era devido. Houveram várias promessas naquela noite no banquete que foi oferecido aos militares, mas não passou disso. Nada foi cumprido! Agora, ele é mais um fustrado com o seu presente, saboreando o sabor da ingratidão de uma Nação!


 " A ingratidão dos povos é mais escandalosa que a das pessoas."

( Marquês de Maricá ) 





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