luli radfahrer 22/10/2012 - 03h35
Houve um tempo em que todos podiam ser inventores. Bastava um pouco de tempo livre e espírito questionador para criar engrenagens em oficinas caseiras. Até a segunda metade do século 20, boa parte das descobertas era rudimentar, de compreensão direta e fácil reprodução.
Com o tempo, as invenções ganharam sofisticação e proteção industrial, até se tornarem grandes demais para que seus mecanismos fossem compreendidos. A situação chegou a um extremo: a constituição de praticamente qualquer bem de consumo se tornou hermética.
A evolução tecnológica é, naturalmente, bem-vinda. Mas o processo em que ela se desenvolveu trouxe consigo um desperdício e uma limitação criativa sem precedentes. Em uma época que tanto se valoriza o ambiente e a inventividade, não faz sentido ainda usarmos fogões descartáveis, geladeiras blindadas ou brinquedos impossíveis de consertar ou alterar. Cada aparelho trocado gera consigo grandes quantidades de lixo eletrônico na forma de cabos, adaptadores e baterias.
É senso comum que a situação precisa mudar. Mas, ao contrário do que defendem saudosistas e tecnófobos, a saída não está no enfrentamento à base de marretas, mas no uso de chaves de fenda, multímetros e fóruns na internet.
A revista "Make", referência para quem não se contenta em ser mero usuário, resume essa filosofia com a frase "se você não pode abri-lo, ele não é seu". Os iPhones, que proíbem até troca das baterias, são alvos evidentes. Mas não são os únicos. Como eles, câmeras, TVs, video-games, relógios, motores e boa parte dos aparelhos cotidianos está além de qualquer escrutínio.
Até mesmo nas grandes empresas há uma preocupação em devolver ao processo industrial sua característica modular. Hoje, com a concorrência grande e pouca distinção real entre marcas ou modelos de produtos, é cada vez mais difícil inventar algo realmente novo. Uma boa solução está na criação de aparelhos integrados, abertos para intervenção por quem se habilite.
A prova que tal modelo funciona pode ser vista na internet, onde sistemas de código aberto permitem que novas ideias complementares apareçam a cada instante.
Não é mais preciso desenvolver aplicativos ou sistemas operacionais completos, em um processo lerdo, burocrático, vulnerável e supérfluo. Pequenos módulos, criados ao redor do mundo, se complementam em simbiose. Sejam desenvolvidos com objetivos comerciais, filantrópicos ou por mera curiosidade, esses organismos promovem a inovação em uma escala sem precedentes, permitindo que qualquer indivíduo crie, no quintal de casa ou na mesa de trabalho, uma tecnologia que pode ajudar a mudar o mundo.
O terreno é muito mais fértil do que foi o final dos anos 1970 nos EUA, quando jovens curiosos transformavam a garagem da casa dos pais em pequenas oficinas para criar os primeiros computadores pessoais. Como naquela época, as novas ideias não surgem de consultorias, "think tanks" ou departamentos burocráticos de grandes empresas, mas de grupos de amadores cuja verba costuma ser inversamente proporcional ao entusiasmo. E há sinais deles em praticamente qualquer área do conhecimento.
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.
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