A 14ª edição do Festival Internacional de Teatro d'Inverno tem tido o mérito, entre outros, de nos actualizar sobre o que andam a produzir os grupos de teatros moçambicanos. Nem sempre o resultado é animador. Há muita boa vontade mas o que, na verdade, nos faz falta, são comentários pontuais e oportunidades de confrontação.
Os que assistiram à peça Nós Matámos o Cão Tinhoso!, pela Companhia JGM, confirmaram a vitalidade da obra homónima de Luís Bernardo Honwana, que depois de mais de 50 anos continua a mexer com artistas nacionais e estrangeiros. Um texto que figura entre os 100 livros mais importantes de África e que, sem dúvida, representa uma referência obrigatória da cultura moçambicana, sendo uma das obras mais significativas da literatura em língua portuguesa.
Os dois actores desdobram-se suavemente nas múltiplas personagens, assumindo papéis diferentes, alternando a pele do cão tinhoso com impressionante plasticidade, interagindo com os dois músicos no palco e cumprindo o que se poderia chamar de casamento perfeito entre os performers. E o texto Inventário de imóveis e jacentes, outro conto do livro homónimo, encaixa que nem uma luva no guião principal (uma novidade, por sinal bem ponderada, comparada com produções anteriores da peça).
Assim, a Companhia JGM constituiu um exemplo de como deve ser um grupo de teatro exemplar: trabalho de grupo, apurado, humilde e apostado nos conteúdos, onde não sobressai nenhum dos componentes mas sim o trabalho de toda uma equipa.
O que faltou? Se o espectador não conhecesse a origem do texto original, o mesmo poderia pensar que a acção se desenrola num sítio qualquer de... Timor-Leste. Afinal, onde está a África do cão tinhoso? Certamente, o texto do Honwana incorpora uma erudição invulgar para aquele tempo, para um negro adolescente que procura retratar a sua vivência e apresentar ao leitor uma metáfora do sistema colonial.
Por isso, resulta ser muito difícil dar um cunho africano, ou ainda moçambicano, a partir daquilo que é a base da peça. No entanto, a presença de um curador científico nunca teria deixado passar a entoação "pouco moçambicana" de certas falas das personagens negras ou mestiças que passeiam no palco, bem como teria reprovado a pronúncia do nome Gúlamo, em vez de Gulamo.
Poderia, talvez, ter sugerido um melhor aproveitamento das componentes musicais, vocais e, sobretudo, dos movimentos de dança. Estes, se bem que refinados, bem concebidos e de um elevado valor estético, mais se parecem com gestos de origem oriental que africana. Por outro lado, se exceptuarmos o tambor, foram pouco utilizadas as sonoridades genuinamente africanas.
Uma oportunidade falhada? Nem por isso. Apenas um despretensioso conselho para futuras abordagens. A casa de madeira e zinco, personagem quase indiferente e bem evidenciada no palco, molda-se com os actores em contraponto. A imagem do cão tinhoso que nela se esfrega no fim, deixando marcas de suor, feito sangue, do bicho imundo e agonizante, é bem o sinal de que os portugueses sabem sonhar, reconhecer e partilhar um passado comum com os moçambicanos.
Por Zoe Búzi
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