A salvaguarda da família, recomendada na aplicação da Lei sobre Violência Doméstica praticada contra a Mulher, “é extremamente perigosa, é perniciosa” na opinião de Conceição Osório que considera que o dispositivo legal “está neste momento a agravar a violência doméstica contra as mulheres”. Autora de um estudo sobre a aplicação da referida lei entre 2009 e 2015, onde constatou que “não há a mínima relação entre os registos da violência doméstica que agentes da polícia fazem e indicam nos seus livros de registo e o que aparece nos tribunais e na Procuradoria, e se olharmos para Saúde a situação é ainda pior”, a socióloga não tem dúvidas sobre a necessidade de rever a Lei 29/2009.
Passados quase dez anos desde a aprovação da Lei sobre Violência Doméstica praticada contra a Mulher a socióloga realizou, com a colaboração de Teresa Cruz e Silva, um estudo sobre a sua aplicação com começa por constatar que “embora a lei defina que o Estado é o responsável pela protecção das vítimas o que nós vemos na lei, lendo e relendo, fazendo a relação entre os vários artigos é que o Estado de facto não se responsabiliza. Não se prevê claramente, não está regulamentado como é que o Estado se vai responsabilizar pela protecção da vítima e em que contexto é que se responsabiliza pela protecção da vítima”.
Falando num encontro de divulgação e debate do estudo, publicado em livro, Conceição Osório apurou que os agentes do Estado, da Educação e da Saúde e outros, que deveriam ter obrigatoriedade de denunciar a violência doméstica, afinal trata-se de um crime público, na realidade não o fazem. “Nós vemos esse caso que é flagrante e diário nos hospitais e unidades sanitárias, com a maior variedade de argumentos”.
Outro aspecto que problemático da aplicação da lei é em relação às penas alternativas, “o estudo que nós fizemos em seis distritos e vimos que não se aplica. Eu vi um único caso na Beira que se aplica com o Concelho Municipal, mas não se aplica de uma forma geral porque não estão definidos os requisitos para haver as penas alternativas nem as formas de aplicação”.
Já no que respeita às sanções que a lei tipifica a socióloga moçambicana verificou que “a maior sanção é para a cópula com transmissão de doença, em que a pena vai de 8 a 12 anos. Se olharmos para o resto das penas, mais valia não ter penas, porque são muito pequenas. É mais grave a pena contra alguém que furta qualquer coisa contra alguém que exerce violência física contra a mulher”.
“O artigo de salvaguarda da família é um artigo que vai contra o espírito da própria lei”
Outro aspecto que desvirtua a aplicação do dispositivo legal são as medidas cautelares, “que só podem ser pedidas pelo Ministério Público, significa que nem a ré se conseguir constituir um advogado ou o juiz não as pode decretar se não forem pedidas pelo Ministério Público, nós analisamos uma série de Acórdãos e não são pedidas nunca”.
“Depois as medidas cautelares exigem também uma regulamentação, porque não diz a duração nem se ela é aplicada na instrução do crime, durante a sentença, quando é que elas podem ser aplicadas. Elas são muito interessantes, falam inclusivamente no afastamento do agressor da casa mas falta na lei regulamentação para dizer como isto é aplicado”, afirmou a académica que é professora há mais de três décadas na Universidade Eduardo Mondlane.
A socióloga chamou atenção para a influência da cultura na aplicação da lei. “Eu não me repugna uma lei da violência doméstica que estejam abrangidos os dois sexos, mas esta lei é de uma violência contra a mulher e é contra a mulher que tem que se fazer todo o articulado. Mas mais do que este artigo 36 que mete o homem, e que foi feito às três pancadas pelo Parlamento, não se vê como é que pode funcionar, existe a salvaguarda da família que é extremamente perigoso, é pernicioso”.
“Eu acho que a salvaguarda da família está neste momento a agravar a violência doméstica contra as mulheres. Primeiro tê-se uma visão ideal da família, sem conflitos, uma visão de afectos, e esta ideia que se tem de família ela vai influenciar e vai de encontro as próprias representações e imagens que os que têm por competência, trabalho e tarefa, avaliar julgar, sancionar, distribuir penas, etc, aos agressores estejam sempre a recorrer explicitamente à salvaguarda da família. Vejo isto nos discursos de toda a gente, dos polícias mas muito dos procuradores e dos juízes. Portanto este artigo de salvaguarda da família é um artigo que vai contra o espírito da própria lei”, declarou Conceição Osório.
“Essas mulheres do caril, que estão ali a fazer caril para o marido e atiram para cima dele já estão cheias”
Aliás os dados do Instituto Nacional de Estatística sobre a violência doméstica no nosso país mostram, de acordo com a autora do estudo, “uma família não é muito simpática, há muita violência em Moçambique, quando 56% das pessoas reportaram violência sobre elas de irmãos e irmãs, de padrastos e madrastas, etc, é uma família que não é aquela idealizada e que vive em mundo de afectos e não é uma família protectora” .
Outro problema constatado pela autora é que não há dados sobre a violência doméstica e a“forma completamente desclassificatória” que os casos são tratados pelas autoridades. “Não há a mínima relação entre os registos da violência doméstica que agentes da polícia fazem e indicam nos seus livros de registo e o que aparece nos tribunais e na Procuradoria. E se olharmos ainda para Saúde a situação é ainda pior”, referiu Conceição Osório que advogou uma revisão da lei “tendo em conta a articulação entre o Código Penal e a lei especial, nomeadamente no que se refere ao Código de Processo Penal e à relação entre a parte substantiva e a parte processual da lei”.
Para suportar a constatação a académica apresentou vários números recolhidos pelas diferentes instituições envolvidas, e citou a título ilustrativo que até final de 2014 na cidade da Beira tinham sido registados 5.261 casos nos Gabinetes de Atendimento todavia, no mesmo período, a Procuradoria tinha 94 casos apenas. Entretanto o estudo verificou que no tribunal local, no mesmo período, tinham sido registados 323 casos, portanto um número longe dos registados no Gabinetes de Atendimento mas também diferente dos casos em curso na Procuradoria.
Além disso a experiente socióloga concluiu, baseada na informação do Instituto Nacional de Estatística, “que a violência doméstica não significa apenas um mandato que os homens tem para a violência, quer dizer os homens agridem porque as mulheres não cumprem os seus papeis e funções sociais só, os homens agridem porque de facto a agressão contra as mulheres faz parte da relação de poder, eu agrido porque eu mando, eu agrido porque eu sou o chefe de família, e muitas vezes não tem nenhuma razão”.
“Essas mulheres do caril, que estão ali a fazer caril para o marido e atiram para cima dele já estão cheias, elas estão a cumprir os seus papeis mas eles têm sempre de mostrar que são homens e mostrar a sua dominação”, sentenciou a académica moçambicana.
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