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segunda-feira, 30 de julho de 2018

SELO: Raiva ou hidrofobia – por José Maria de Igrejas Campos

Tenho seguido nas rádios e nos diversos canais de televisão o que tem sido dito sobre a mordedura de pessoas por canídeos e sobre a raiva. Infelizmente, as informações dadas pecam por serem insuficientes e incompletas.

Antes de me referir a este assunto vou deixar aqui quatro versos de um poema dum poeta português que se encaixam perfeitamente no que disse acima. O poema chama-se QUASE e podem encontrá-lo na página 68 das Obras Completas de Mário de Sá Carneiro editadas pelas Edições Ática, na Colecção Poesia (para quem quiser ler o poema completo). Os quatro versos são estes:

« UM POUCO MAIS DE SOL--E FORA BRASA

UM POUCO MAIS DE AZUL--E FORA ALÉM

PARA ATINGIR, FALTOU-ME UM GOLPE DE ASA

SE EU AO MENOS PERMANECESSE AQUÉM ...»

Vou então referir-me àquilo que importa saber:

1. Quanto ao cão

A maior parte dos cães que desenvolve a doença e numa fase já avançada têm hábitos peculiares. É um cão que corre sem parar e está furioso, por exemplo, morde uma pessoa no barro da Polana, e continua a correr, vai morder outra pessoa no Alto-Maé, continua a correr e escorre-lhe da boca uma saliva espumosa, e vai morder outra pessoa na Baixa da Cidade, sempre a correr, vai morder outra na Coop até que finalmente pára, porque surge outra característica desta doença na fase mais avançada, que é a paralisia das patas traseiras, ele bem tenta arrastar-se com a ajuda das patas dianteiras, mas não consegue, e assim fica até á morte.

Precisamos de saber que o período de incubação desta doença nos cães, ou seja o tempo que medeia entre a altura em que o cão foi mordido por outro animal raivoso, que pode não ser um cão, pode ser por exemplo um macaco, um lobo, um chacal ou um gato e as manifestações da doença e a morte, é de 18 dias. Isto é muito importante que se saiba, pois se conseguimos manter em cativeiro um cão que mordeu uma pessoa e o animal está vivo ao fim de 18 dias, não tem, nem vai ter raiva e a pessoa mordida nunca irá ter raiva, em resultado desta mordedura, pelo que não precisa de ser vacinada. Se conseguíssemos manter em cativeiro todos os cães que mordem pessoas, cuja maioria não tem raiva, poupava-se imenso dinheiro em vacinas.

2. Quanto ás pessoas mordidas

A primeira coisa que a pessoa deve procurar saber é a quem pertence o cão e uma vez identificado o dono (quando isto é possível), obter deste a garantia de que o cão foi vacinado há menos de um ano, pois todos os cães devem ser vacinados anualmente. Se o cão foi vacinado, o que o indivíduo mordido deve fazer é lavar a ferida com água e sabão, as feridas por mordedura canina não devem ser suturadas. No entanto em caso de feridas profundas e extensas é conveniente dar uns pontos para aproximar os bordos da ferida, caso contrário a ferida nunca mais cicatriza, nem pára de sangrar, isto em minha opinião.

Há cerca de dez anos, estando a passar o fim-de-semana, com a minha família na praia do Xai-Xai, o meu cão um corpulento pastor alemão, vacinado contra a raiva, vê uma jovem de cerca de 18 anos, passar a correr junto ao muro da nossa casa, e o meu cão vai atrás dela e morde-lhe uma perna, provocando-lhe uma ferida num dos gémeos da pena esquerda que foi lavada completamente e durante muito tempo com água e sabão. A ferida era muito extensa e bastante profunda, que sangrava abundantemente. Já no Hospital Provincial pedi à enfermeira que nos atendeu que a ferida, dada a sua dimensão, profundidade e sangramento abundante, fosse suturada. Ela respondeu-me que haviam recebido instruções para não suturarem mordeduras de cão. Muito bem, disse-lhe eu, a regra é essa e eu sei disso, mas devido à extensão, profundidade e sangramento eu mesmo vou dar uns pontos com seda para aproximar os bordos da ferida. Arranje-me por favor um porta-agulhas, uma pinça de Kocker, um fio de seda com agulha, uma tesoura e um par de luvas. Vou trazer tudo o que pediu menos as luvas, porque não temos. Trouxe tudo excepto as luvas.

Obrigado, agora veja como se pode suturar uma ferida sem luvas sem qualquer risco para mim, e em cinco minutos a ferida estava suturada.

No fim-de-semana seguinte voltei à praia e a jovem veio à minha casa e eu tirei-lhe os pontos e a ferida agora fechada tinha bom aspecto. Esta jovem era seropositiva e, um ano depois, morreu no hospital, com SIDA. No entanto fez as pazes com o meu cão, quando lá foi a casa, pois ele abanou a cauda quando a viu e veio lamber-lhe as mãos à laia de desculpa, e ela fez-lhe uma festa na cabeça.

3. A vacinação tem alguns riscos

a) A inoculação da vacina a um indivíduo vacinado pode ser fatal.

b) Algumas pessoas vacinadas podem, muito raramente desenvolver encefalites que podem ser mortais. Foi o que aconteceu com o chefe da Polícia do Chibuto que diziam que tinha morrido de raiva depois de vacinado contra esta doença, após mordedura por um cão que ele julgava raivoso e que ele abateu a tiro de imediato e ainda por cima mandou incinerar, o que impediu que se autopsiasse o cão para verificar a existência ou não de corpúsculos de Negri. Fui saber junto do enfermeiro que tinha aplicado a vacina qual o número de doses e o espaço entre elas, que coincidiam com as instruções que tinha recebido do Xai-Xai e com as que vinham na pagela que acompanhava a vacina escritas em francês. O enfermeiro contou-me que a esposa do chefe da Policia levava uma vida dissoluta e que ele desconfiava haver um relacionamento entre ela e o dono do cão. Pretendendo leva-lo para a esquadra, para o interrogar, julga o enfermeiro, entrou pelo quintal dele de pistola em punho o que levou o cão a ataca-lo, dando-lhe uma dentada numa perna e o polícia deu vários tiros no cão, matando-o. Deu ordens ao polícia que vinha com ele no carro, de tratar de incinerar o cão. Já não foi procurar o dono do cão, deixou isso para mais tarde.

Dirigiu-se para o Hospital para tratar a ferida e fazer a 1ª dose da vacina anti-rábica. Poucos dias depois morreu e apresentava como sintomatologia uma paralisia ascendente tal como refere o livro de texto que consultei que refere como sinais mais graves de encefalite provocada pela vacina anti-rábica.

Outro indivíduo, meu conhecido, foi vacinado contra a raiva, após mordedura por cão vadio, teve também uma encefalite cujos sintomas eram mais benignos: paralisia bilateral dos nervos faciais.

Disse-lhe para mascar chewingum ao longo do dia, todos os dias e, embora lentamente, o tratamento foi eficaz e ao fim de um mês estava completamente curado.

c) A vacina tem efeitos protectores durante um ano. As pessoas vacinadas devem ter em atenção ao que se refere em a) e não se expor a canídeos.

4. Casos de raiva no homem

Na minha vida de médico só vi um caso de raiva humana. Tratava-se de um padeiro que de manhã cedo esteve a amassar pão na padaria sem qualquer sintoma e sentindo-se muito bem. Depois do meio-dia começou a sentir sintomas de raiva que se caracterizavam por um estado de depressão e ansiedade intensos, mal estar e febre. Já no Hospital, para onde o patrão o levou, verificamos que havia, além do já referido, um aumento de salivação, bem como espasmos da laringe e da faringe que dificultava ou mesmo impedia a comunicação com o pessoal do Hospital incluindo eu, que comecei a suspeitar que pudesse ser um caso de raiva pelo que internamos o doente num quarto isolado e perguntamos-lhe se ele alguma vez tinha sido mordido por um cão e ele respondeu afirmativamente, e tentando falar, mostrou dois dedos e balbuciou dois anos. Achei estranho um tão longo período de incubação(espaço de tempo que medeia entre a infecção, neste caso a dentada do cão, e o inicio dos sintomas da doença). Fui procurar num livro de texto de Medicina Interna que referia que o período de incubação no homem é de 30 a 60 dias, mas pode ser só de 10 dias se as lesões ou seja, se a mordedura tiver ocorrido na cabeça ou pescoço, sendo nestes casos a sintomatologia mais grave. No entanto, em casos excepcionais, este período pode ir até 2 anos.

O doente, às tantas, disse que tinha sede, mas quando trouxemos um copo de água, teve um ataque de fúria, parecendo querer agredir-nos ou atacar-nos. É, por isto, que se chama também à Raiva, Hidrofobia. Tivemos que fugir todos de ao pé da cama face ao estado de loucura do doente, que durante a crise emitia roncos que, por vezes, parecia querer ladrar.

Precisávamos de medicar o doente com fármacos injectáveis. Para isso tivemos de prender o doente à cama com ligaduras de câmbrico. Quando ficou imobilizado demos-lhe altas doses de opiáceos que o puseram a dormir. Mandei sair toda a gente da sala, que fica em frente do Banco de Socorro do Hospital Provincial, do outro lado do corredor, fechei a porta à chave e meti a chave no bolso, para ter a certeza que ninguém ia entrar naquela sala. No outro dia, de manhã cedo, abri a porta e abeirei-me da cama e verifiquei que tinha morrido.

5. Casos especiais que carecem da intervenção dos Serviços de Veterinária

a) Se um cão que mordeu uma pessoa, morre ou é morto, antes de 18 dias após a mordedura, é importante saber se este cão tinha ou não raiva. O cadáver do cão deve ser embrulhado numa zarapilheira e levado aos Serviços de Veterinária para ser autopsiado(só a cabeça)para ver se existem corpúsculos de Negri junto às células cerebrais. Se tiver corpúsculos de Negri o cão tinha raiva e nesse caso a pessoa mordida deve ser de imediato vacinada. Se não tiver corpúsculos de Negri e tiverem decorrido 14 dias após a mordedura, é o tempo necessário para o aparecimento dos corpúsculos de Negri referidos, depois de um cão ser mordido por outro animal com raiva. Então, nesse caso a pessoa não precisa de ser vacinada.

b) Imaginemos que o Município decide capturar e abater todos os cães vadios existentes na cidade. Uma medida deste tipo não me repugnaria se a mesma fosse discutida em todos os bairros e se obtivesse um consenso da parte dos munícipes, o que não será fácil. Pelo menos uma parte dos cães que apelidamos de vadios, têm dono, que não os alimentam nem os levam a vacinar quando há campanhas organizadas pelos Serviços de Veterinária, que até fazem a publicidade necessária para que tragam os cães a vacinar. Seria desejável que todos os cães com dono tenham coleira. Acham se calhar que estou a sonhar alto! Talvez ,mas gasta-se tanto dinheiro em coisa inúteis que pode perfeitamente ser viável que uma empresa moçambicana comece a fabricar coleiras de coiro largas e resistentes com uma boa e resistente fivela de aço ou outro metal duradouro e comece a fabricar coleiras de coiro resistentes e que o governo subsidie o preço de forma a tornar as coleiras acessíveis à maioria da população. E os serviços de veterinária colocariam marcas nas coleiras dos cães vacinados. Já seria aceitável que após uma campanha de vacinação o Município capturasse e abatesse todos os cães sem coleira nem sinal de ter sido vacinado. Eram cães vadios e ninguém ia lamentar a sua morte.

Se isto funcionasse os Serviços de Veterinária tinham de colaborar para examinarem os cérebros dos cães abatidos para ficarmos a saber qual é a percentagem dos que têm corpúsculos de Negri e portanto são raivosos

Aconteceu uma coisa semelhante na campanha de construção de latrinas melhoradas. As cooperativas começaram a construir as lages de cimento para a cobertura do poço da latrina, mas ninguém comprava porque o preço era excessivamente caro. Eu próprio resolvi o problema: peguei no telefone e liguei ao Dr. Magid Osman, Ministro das Finanças a quem expliquei detalhadamente a situação e ele aceitou de imediato. A partir daí, foi apenas discutir como é que isso ia ser feito, pois a decisão já estava tomada eles iam financiar a operação. A partir daí, a procura foi tanta, que tiveram que se criar mais cooperativas para responder à procura.

6. Da Vacinação

As informações que estão a ser prestadas à população referem que devem ser dadas 4 doses de vacina não se indicando qual é o espaço entre as doses. Calculo que esta é a indicação fornecida pelo fabricante da vacina que deve vir com instruções quanto à forma de aplicação, número de doses e espaço de tempo entre estas.

O número de doses tem variado ao longo dos tempos:

O primeiro livro de texto que consultei tem quase meio século refere-se a uma vacina fabricada pelo Instituto Pasteur de Paris que deve ser administrada todos os dias durante duas semanas.

Recordo-me que na altura em que eu era director de Saúde da Cidade de Maputo usávamos uma vacina com 7 doses administradas com intervalo de 3 dias.

Se um individuo é mordido na cabeça deve iniciar a vacinação imediatamente porque período de incubação é curtíssimo. Um dos livros que consultei refere que nestas mordeduras na cabeça pode estar indicada a administração simultânea de soro anti-rábico. Quer cá em Moçambique, quer em Portugal, durante os 7 anos que lá permaneci para tirar o curso de Medicina, nunca ouvi falar de tal soro.

por José Maria de Igrejas Campos



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