“Energia criadora e desejo de expressar identidade”… Não seria esta uma bela definição para cultura? Ou para desenvolvimento? Ou para os dois?
Jorge Werthein
No seu livro Understanding Public Policy, Thomas Dye ensina que política pública compreende tudo aquilo que os governos decidem fazer ou não fazer, o que abrange, por exemplo, a regulação da conduta humana e a colecta de impostos. Todavia, é importante também, explica Dye, conhecer o fundamento assim como as diferenças que estas acções e inacções governamentais acarretam. Assim, seria legítimo considerar a transigência do governo, em relação à pirataria fonográfica e audiovisual e delitos contra a propriedade intelectual, como uma política pública, ainda que a violação intencional aos direitos de autor e direitos conexos, de forma comercial, seja proibida pelas leis (Lei n.º 4/2001, de 27 de Fevereiro e Decreto n.º 927/2001, de 4 de Setembro)? A ideia, de per si, é contraditória, mas está claro que o combate à pirataria cultural implica mais do que o cumprimento da legalidade, ele envolve também pressões sociais e escolhas por parte do executivo.
As políticas culturais, como quaisquer políticas, atendem ao que os franceses chamam de Intérêt général, ou seja, a finalidade da acção do Estado, que, entretanto, é determinado pelos constrangimentos financeiros. Afinal, é esta realidade que condiciona as atenções dos fazedores de políticas, decisores políticos, provedores de serviços e utentes. A existência de recursos limitados força o executivo a planear de forma estratégica ou a preferir “programas populares”, aqueles cujos resultados são imediatos e que são geralmente usados como referências em campanhas eleitorais.
Em Moçambique, é dever do Ministério da Cultura e Turismo a gestão das políticas culturais, instituição cuja principal atribuição é “a promoção da cultura e do turismo como instrumento do desenvolvimento social e económico, da afirmação da personalidade, da consciência patriótica, da consolidação da identidade e unidade nacional e da educação cívica e artística dos cidadãos” (Decreto Presidencial n.º 10/2015, de 13 de Março). Numa leitura inicial, esta atribuição justifica o primado dos assuntos culturais que, de forma visionária (ou talvez reducionista), foram justapostos às matérias de turismo, também um dos sectores que mais cresce nas economias modernas. A visão do governo, de agregar a cultura ao turismo, pode ser percebida como um estímulo à continuação da existência das manifestações culturais e da sua utilização como potencial turístico de uma comunidade ou região. De certo modo, os dois sectores têm a sua importância acrescida na economia nacional, porém a maximização dos resultados desta união só será viável se ambos os sectores, em sinergia, forem parte da mesma estratégia e dos mesmos objectivos macropolíticos. Assistir-se-á, contrariamente, à uma fragmentação institucional que poderá afrouxar a contribuição dos progressos do sector do turismo e desfavorecer a criação endógena de riqueza.
Esta aparente “centralidade” da cultura pode ser tomada como herança da estrutura do anterior governo, onde as políticas culturais tinham um ministério autónomo. O então ministério vigente, que se afastava da educação, buscou criar condições para o empoderamento dos artistas e resguardar o património imaterial. A promoção de festivais (regionais e nacionais) caracterizou essa centralidade, transpondo cada dimensão da vida humana – as tradições culturais, saberes e fazeres –, e reforçando a ideia de diversidade e o sentimento de identidade, tanto individual como colectiva (a ideia de nação). É importante referir que, neste período, a cultura esteve atrelada à actuação ou práticas políticas, ao instrumentalizar os agentes culturais a lutar por melhorias em seu bem-estar.
O antigo Ministério da Cultura legislou sobre espectáculos e divertimento público e buscou construir a ideia das indústrias culturais, que se imaginava como uma nova promessa. Ainda que se possa considerar, hoje, que as políticas aludidas estejam no estágio de execução, a instituição não reunia condições para que elas fossem bem-sucedidas. Em relação à política de espectáculos, o Ministério da Cultura não tinha, por exemplo, pessoal necessário e mecanismos de fiscalização para a sua implementação (e também não as reúne agora); e quanto às indústrias culturais (que incluem as artes visuais, publicidade, cinema, televisão, rádio, música, arquitectura e softwares educacionais e de entretenimento, etc.), como esperar que o sector cultural tivesse melhores frutos e contribuísse para a economia e para o PIB, se os agentes culturais (fazedores, gestores, produtores e o público) não eram/são suficientemente motivados a assumirem um papel activo no processo?
Enquanto isso, a Lei do Mecenato (Lei nº 4/94, de 13 de Setembro) e o respectivo regulamento (Decreto, nº 29/98, de 9 de Junho), que fixam benefícios sociais e fiscais às entidades que desenvolvam ou apoiem, entre outras áreas, a cultura, ficaram à espera de um resgate e adaptação dentro das novas possibilidades culturais, o que nunca aconteceu. Como um mecanismo de fomento à cultura, o mecenato é caracterizado por um percurso de esquecimento, com uma manifestação rara e isolada, sendo geralmente praticada pelas grandes companhias. Ainda assim, estas empresas não possuem um plano de patronagem (embora não seja obrigatório), não publicitam o total dos financiamentos e confundem o mecenato com a responsabilidade social corporativa.
Um órgão necessário e activo no estímulo à produção cultural é o Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural (FUNDAC), criado há mais de vinte anos. Baseado na ideia do “pluralismo cultural”, o FUNDAC provê recursos para a edição de livros, captação fonográfica, peças cinematográficas, pesquisas e viagens culturais, entre outras actividades. Entretanto, a actuação do FUNDAC é dependente das verbas que recebe do governo, o que motiva a existência de segmentos culturais privilegiados.
Situado na cidade de Maputo e sem representações locais, o FUNDAC limita o grau de participação dos interessados e o acesso à obtenção e utilização dos recursos ao resto das províncias, um favoritismo intencional que não só lesa as manifestações culturais locais, mas também o desenvolvimento socioeconómico, o bem-estar e a liberdade da população. Uma análise mais acurada põe em causa, ainda, a gestão e a legitimidade do processo de selecção das expressões culturais que requerem o financiamento, na medida em que os critérios usados não são do conhecimento do público, o que constitui uma clara evidência do patrimonialismo. Deve-se considerar, então, a adopção de um sistema de editais de financiamento (dividido em áreas culturais) e de selecção pública que sirva de canal de diálogo com a sociedade, promovendo o equilíbrio na distribuição regional dos recursos (descentralização e democratização da cultura), e estimulando assim a criatividade, a diversidade e os agentes culturais. Critérios objectivos de selecção tendem também a credibilizar a gestão cultural.
No geral, a cultura em Moçambique sempre foi marcada por uma relação de tristes paradigmas, como sucedeu em países como o Brasil – autoritarismo, ausência e instabilidade – referentes, respectivamente: (i) ao período pós-independência, em que a cultura, como instrumento político, buscou edificar os alicerces da nação e construir o homem novo; (ii) ao período que acompanhou a introdução da macropolítica neoliberal do Estado, chamando para si um papel menos intervencionista; e (iii) ao período contemporâneo, caracterizado pela globalização, disseminação das tecnologias de informação e comunicação (tic’s) e rápidas mudanças culturais. Presentemente, a instabilidade cultural chama a atenção para a necessidade de se repensar a Política Cultural de Moçambique e a estratégia de sua implementação (Resolução n.º 12/97, de 10 de Junho) com objectivo de torná-la viável e adequada aos novos desafios socioeconómicos e culturais. Em termos lógicos, é importante que a administração local do Estado e as autarquias elaborarem, de igual modo, as suas próprias políticas culturais.
É evidente que a cultura em Moçambique está nos seus melhores dias, mas é útil relembrar, à guisa de exemplo, que o país não tem uma só gravadora de discos, e que a contrafacção fonográfica e cinematográfica está tão profundamente enraizada na sociedade, que ela se confunde com uma prática legal.
Mas, e então, são ou não as políticas culturais de Intérêt général? Uma comparação entre as duas últimas macropolíticas do governo podem ajudar a responder a esta questão. No Programa Quinquenal do Governo 2010-2014, a cultura era referenciada, em dois momentos, como uma das “Acções Prioritárias” para o alcance dos objectivos do governo (Promover a riqueza cultural e Promover actividades culturais). Na secção relativa aos objectivos, o sector da cultura, particularizada em duas páginas, era parte do “Combate à Pobreza e Promoção da Cultura de Trabalho” e percebido como um “Instrumento de formação da Consciência Patriótica, de reforço da Unidade Nacional, de Exaltação da moçambicanidade e da melhoria da qualidade de vida do cidadão”. No Programa Quinquenal do Governo 2015-2019, o sector é praticamente invisível, não sendo mencionado de forma isolada. A cultura está somente em destaque no primeiro objectivo estratégico (alínea m), “Promover exposições, feiras e festivais que priorizem a divulgação da diversidade cultural ao nível local e nacional”, e no quarto (alínea l), “Consolidar o ensino artístico através do alargamento das instituições de formação cultural e artística de nível básico, médio e superior”. Ora, a cultura foi literalmente varrida das prioridades do governo, ignorando-se assim, do ponto de vista operacional, a sua contribuição para “a promoção do emprego e o incremento da produtividade e da competitividade”, que é o espírito da nova estratégia de desenvolvimento nacional.
Que conclusões se podem tirar da breve comparação apresentada? Ficou evidente que os desafios que o sector da cultura enfrenta são inerentes ao próprio processo político. O Programa Quinquenal do Governo 2015-2019 não estatui objectivamente as pretensões culturais do país (os bens de mérito), entretanto salienta, como o fazem alguns países, a provisão de bens e serviços básicos. Do ponto de vista do Orçamento do Estado (OE), esta escolha macropolítica terá, com alguma certeza, tornado o Ministério da Cultura e Turismo no mais pobre dos ministérios, acentuadamente retraído, e em termos de visibilidade, muito acanhado. Em suma, pode-se dizer que, em relação às políticas culturais, há pouca “luz no fundo do túnel”.
É urgente mudar a praxis das políticas culturais de Moçambique. O sector que superintende a cultura deverá propor políticas inovadoras e com maior impacto no seio da população. Acções como implementar um Plano Nacional de Leitura; descentralizar e criar novos públicos de cultura; organizar uma rede nacional de teatros e cineteatros; maximizar e incentivar novos mecanismos de fomento e financiamento à criação artística (incluindo fundos comunitários e Casas de Cultura); promover a diversidade e a transversalidade cultural e consolidar a ideia e o controlo das indústrias culturais – incluindo a inovação, produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais – poderão situar a cultura no quadro socioeconómico que presentemente lhe é negada no país. Só assim, talvez, a “revolução cultural” que muito se anseia poderá acontecer.[1]
[1] Ensaio originalmente publicado no jornal “Debate: Artes e Cultura”, 19 de Fevereiro de 2016, Maputo, Moçambique.
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