Numa reunião publica recente, o ministro da Indústria e Comércio fez duas declarações que, voluntária ou involuntariamente, revelam as grandes tensões da política económica do governo, herdadas de duas décadas anteriores. Primeira, defendeu os incentivos fiscais dados aos grandes projectos/empresas, usando os três argumentos mais comuns: (i) sem os incentivos não teríamos investimento; (ii) os incentivos abrangem investidores nacionais e estrangeiros; e (iii) quem critica os incentivos está errado e tem o "olho na grana".
O que é problemático com estes argumentos?
(i) 90% do investimento privado dos últimos 20 anos foi feito no ou em torno do núcleo extractivo (75%) da economia e serviços associados (15%). O núcleo extractivo da economia inclui o complexo mineral-energético (gás, carvão, areias pesadas, alumínio, etc.) e as restantes grandes mercadorias primárias de exportação (tabaco, madeira, bananas, açúcar). Estas actividades são realizadas por grandes empresas multinacionais, algumas delas completamente dominantes no mercado internacional (como são os casos da Vale e da BHP, das empresas petrolíferas, entre outras), aa quais escolhem/tomam as suas decisões com base em estratégia corporativa, nas condições económicas globais, nas condições competitivas (normalmente entre oligopólios) nos seus mercados em particular e na presença de recursos economicamente viáveis. A viabilidade económica dos recursos depende, entre outros factores (como os mencionados acima), das condições e custos de expropriação, da minimização dos custos e riscos do investimento e da rapidez com que o capital investido é recuperado (que depende da taxa de depreciação definida). Nenhuma destas questões é tocada, muito menos resolvida, por incentivos fiscais sobre os lucros do capital. Aliás, investimento não pode ser incentivado por incentivos dados sobre uma expectativa no futuro (que é o que incentivos sobre lucros são), pois o primeiro dilema do investidor é como financiar o investimento.
O Estado moçambicano usa outros incentivos também: a entrega de enormes concessões e infra-estruturas públicas a baixo custo; permissão da aceleração da depreciação; permissão da conversão das concessões em acções financeiras possíveis de ser vendidas e revendidas no mercado global (financeirização de activos reais); "parcerias" público-privadas; garantias públicas para dívida privada; investimento público em infraestruturas para estes sectores.
Como parece ser evidente, os incentivos fiscais sobre os lucros do capital para este tipo de investimento são redundantes. Os incentivos fiscais são equivalentes a uma despesa pública. Qual é o sentido de fazer uma despesa em algo redundante?
(ii) a lei não discrimina directamente contra a nacionalidade do investimento, mas as condições económicas reais em que a lei existe encarrega-se de o fazer. Porquê? Por um lado, apenas entre 4%-6% do investimento privado é investimento directo doméstico. Por outro lado, os incentivos estão focados em investimento em bens de capital, não na aquisição de títulos de propriedade ou de participação (que é uma parte significativa do investimento doméstico). Finalmente, os incentivos aumentam com a escala do investimento e, ao nível do grande capital, são desproporcional e incomparavelmente maiores e mais diversificados.
Logo, na melhor das hipóteses, investidores domésticos recebem 2%-3% dos incentivos que o grande capital multinacional recebe.
(iii) a demonstração da redundância dos incentivos fiscais sobre lucros do capital, em contexto de economias extractivas, para atracção do investimento não foi feita por ONGs com agendas obscuras, mas por sistemáticos inquéritos e outros estudos, realizados por profissionais nacionais e estrangeiros (académicos, consultores, especialistas fiscais, etc.), sobre Moçambique e sobre outros países.
A questão seguinte é: porque existem estes incentivos? Há muitas respostas possíveis: são o custo social da inclusão de "capitalistas emergentes" nacionais, sem capital financeiro, nas sociedades das empresas; são uma demonstração simbólica do total compromisso e submissão do Estado ao capital; representam uma medida simbólica, ainda que redundante, com custo zero a curto prazo (o custo social desta medida é e exorbitante maa apenas quando o investimento começa a dar lucro); etc.
O ponto é que estes incentivos são redundantes para atrair ou localizar investimento, o que se torna ainda mais o caso por causa da multiplicidade de incentivos existentes; têm custos sociais elevadíssimos; minimizam os potenciais benefícios económicos dos empreendimentos; e, quando muito, apenas beneficiam alguns interesses privados.
Segundo, o ministro da Indústria e Comércio afirmou que subsidiar a agricultura é inviável porque 1 milhão se trabalhadores formais não pode financiar 30 milhões de habitantes.
Que problemas tem esta afirmação?
Para começar, ele compara 1 milhão de trabalhadores com 30 milhões de habitantes (entre os quais há trabalhadores, reformados, desempregados, pessoas incapacitadas para o trabalho e crianças). Este é um mal menor.
Além disso, ele assume que toda e qualquer pessoa ou tem emprego formal ou é agricultor, o que é falso.
Adiante, e mais importante, ele assume que seriam 1 milhão de trabalhadores a financiar subsídios à agricultura, no mesmo discurso em que defende os incentivos fiscais, mesmo os redundantes.
Ora, incentivos fiscais redundantes são uma forma de excesso de subsídio para o grande capital. Logo, se esse excesso (grosso modo calculado em US$600 milhões por ano) for retirado, pode subsidiar aspectos fundamentais do desenvolvimento agrário, em especial no quadro de uma estratégia de industrialização diversificada e articulada em que a agricultura jogue um papel fundamental (começando por garantir alimentos diversificados e baratos para um proletariado ou semi-proletariado em expansão).
Além disso, essa transferência de excedente do núcleo extractivo para o resto da economia, que torna a política fiscal socialmente mais justa e mais eficaz a lidar com desigualdades, redistribui rendimento na direcção dos grupos sociais, sectores e regiões que mais precisam para se desenvolverem.
Subsidiar a agricultura não é inviável. O que é inviável, por ser insustentável e injusto, é continuar a dar subsídios redundantes (em excesso) ao capital extractivo e fazer o resto da economia, da sociedade e das pessoas pagarem por isso. O discurso de Ragendra de Sousa revela perfeitamente como é impossível por lógica na politica económica do governo sem um reconhecimento explícito da lógica histórica de do modo de acumulação de capital e das suas contradições internas, de que essa política económica é parte.
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