Ruanda: onde aconteceu o único genocídio do século XX
– Professor JOSÉ KAGABO, historiador ruandês (*) em GRANDE ENTREVISTA (Parte I) ao Canal de Moçambique, em Maputo, em Junho de 2012
“Os europeus sabem que colonizam, mas os africanos não sabem, de todo, que são colonizados, porque não há diálogo entre os dois sistemas.”
“A reconstrução nacional e regional não são apenas questão de comerciantes ou políticos. Os intelectuais têm que desempenhar o seu papel.”
Por: Joana Pereira Leite, Dirce Costa e Fernando Veloso
O Canal de Moçambique teve a oportunidade de entrevistar o Professor José Kagabo, historiador ruandês, em visita a Maputo, em Junho de 2012, por ocasião da Conferência da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, evento que coincidiu com as comemorações dos 50 anos da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
Agora, em que o dever de memória nos interpela, vinte anos após o genocídio dos tutsi, no Ruanda, desencadeado em 7 de Abril de 1994, a difusão desta entrevista assume particular significado pela reflexão que suscita em torno do processo de reconstrução nacional daquele país africano. Porque, tal como afirma José Kagabo: “Não estamos sozinhos no mundo, não somos uma ilha , estamos numa região. E o caso da reconstrução nacional do Ruanda deve ser cruzado com outras experiências”.
Tal como Moçambique, também o Ruanda faz parte da África Oriental, e ambos integram a SADC, o que reforça o interesse do nosso interlocutor em contribuir para a aproximação dos dois países, dado que, no seu entender, “a reconstrução nacional e regional não são apenas questão de comerciantes ou políticos. Os intelectuais têm que desempenhar o seu papel”.
Mas leia, em jeito de pergunta-resposta, como foi a entrevista com o professor José Kagabo, do Ruanda, em Maputo.
Canal de Moçambique (Canal):
Professor José Kagabo, actualmente [2012] está de passagem em Moçambique, e gostaríamos de aproveitar a sua estadia para saber o que se passa no Ruanda, país longínquo, mas também próximo, uma vez que está aqui para nos dar o seu testemunho. Aqui, em Moçambique, tivemos consciência de que aconteceu o genocídio no seu país, e gostaríamos de saber a sua opinião sobre o que sucedeu
de facto e sobre o processo de reconstrução dessa nação após o genocídio. Mas, antes, queremos sublinhar que aqui, em Moçambique, quando se pensa no Ruanda, uns pensam apenas no genocídio, mas outros não deixam de pensar na “Suíça” de África.
Professor José Kagabo (Prof. Kagabo): Acho que vou começarcom o que acaba de dizer: quandoouço dizer que o Ruanda é o genocídioou a “Suíça” de África, pensoque são duas formas caricaturais deimaginar um país e a sua História. Acaricatura, ou seja a “Suíça”, é umacaricatura feliz, romântica, em quese pensa na Suíça montanhosa, nocoração da Europa, onde há bomtempo e se vive bem, mas que secompara com o Ruanda imaginandoque são dois pequenos países emque, geralmente, nas montanhas hámenos riscos de doença, porque aaltitude favorece a saúde. Ou seja,uma imagem vaga: os turistas vêmpara ver o “País das Mil Colinas”,é uma caricatura em que o paísnão é mais do que isso. Na outracaricatura – o Ruanda e o genocídio–, é verdade que o país teveo genocídio, tal como é verdadeque há montanhas, mas que sabemosnós desse genocídio? Comochegou o Ruanda a tal situação?Será que se sabe que o Ruandaé uma das mais antigasnações africanas? Isto não sesabe! O Ruanda é uma naçãodesde os sécs. XIII ou XIV.Claro que, enquanto nação, conheceum processo de construção,uma história que ocorre até ao momentoda colonização que, segundoa lenda, começa em 1885, na famosaConferência de Berlim. Mas, esquecemosque antes, no séc. XVIII,já havia agências comerciais de holandeses,e esquecemos que a Françaestava em S. Luís do Senegal, etambém esquecemos que os omanitascolonizaram a África Oriental.
Ou seja, a colonização não começa na Conferência de Berlim.
Essa conferência vem simplesmente formalizar, à maneira europeia, a noção de fronteira, ou seja, consagrar que se tracem as fronteiras e se reparta a África entre as grandes potências. E é nesta altura que o Ruanda entra na História colonial. E são os alemães que herdam a parte continental da Tanzânia, que tem, então, o nome de Tanganica, juntando-
-se-lhe o Ruanda e o Burúndi, aquilo a que se chamou a África Oriental Alemã. Ou seja, o Leste Africano do Protectorado Alemão.
Segundo o chamado acordo com os chefes Ruandeses, a colonização alemã terá começado em 1894, o que é um pouco teórico mas, de facto, a primeira residência alemã é fundada em 1907, ou seja, entre 1907 e 1914, ano do começo da Primeira Guerra Mundial. Não se pode dizer que, em sete anos, seja possível uma colonização. Quando se diz que o Ruanda era alemão, é completamente formal. É teórico. Mas não houve uma verdadeira colonização porque o tempo foi demasiado curto. Nenhuma colonização se construiu em sete anos.
Canal: O governo era do Ruanda ou alemão?
Prof. Kagabo: Houve os dois.
Um governo de administração alemã, teórico, que começou a colocar agentes, mas só alguns. Havia um sistema de governo do Ruanda, sendo este país uma monarquia desde a sua criação. Até chegarem os alemães, sempre houve uma dinastia que reinava.
Canal: Um poder bicéfalo?
Prof. Kagabo: Ora bem, existia um governo ruandês com o seu sistema de administração local, os chefes e os subchefes, no fundo, havia dois tipos de chefia: um responsável pelo gado, o outro, pela agricultura. Toda a organização se apoiava neste dois pilares económicos. De seguida, do ponto de vista do dinamismo da nação, quando chegam os europeus, o Ruanda é um país em plena expansão, que se estende sobre as suas margens para Oeste. Mas o processo de expansão da nação é travado, porque os europeus vão traçar as fronteiras. Quando se fala de colonização, penso que sempre é necessário voltar ao início do ‘quiproquo’. Os europeus sabem que colonizam, mas os africanos não sabem, de todo, que são colonizados, porque não há diálogo entre os dois sistemas.
Canal: Mas os dois sistemas funcionam?
Prof. Kagabo: Sim. Mas a que chamamos funcionar? Os alemães estão presentes para usar uma administração colonial à moda europeia, os africanos vêem planos que não sabem para que servem, e continuam a sua vida normal.
Então, a Primeira Guerra Mundial chega em 1914 e prolonga-se até 1918, e os alemães perdem-na. É neste momento que a gestão colonial muda.
Canal: Nessa altura já havia na nação ruandesa algumas divisões entre tutsis e utus?
Prof. Kagabo: Não, não, não. Havia o rei, como em todas as monarquias. O rei e o seu povo e, entre ambos, os chefes. Então, chegam os belgas. A guerra propaga-se até África, e os belgas, aliados das potências anti-alemãs, estão na África Central (Congo), com os ingleses no Leste (Uganda, Quénia e Zanzibar). Os alemães são apanhados no meio da ‘sandwich’. A Alemanha perde todas as suas colónias, e o Ruanda, a partir de 1916, é ocupado militarmente por tropas belgas. Os poucos alemães que estavam no Ruanda desaparecem e até hoje não se sabe o que lhes aconteceu. É difícil reconstituir as suas vidas porque, durante a guerra, os arquivos de Potsdam foram destruídos, restando uma parte obscura da História. Enfim, para voltar ao Ruanda, depois da derrocada total em 1918 e da assinatura dos Acordos de Versailles em 1919, os alemães perdem todas as suas colónias em África, tanto no Leste de África, com o Ruanda-Urundi, como as do Oeste, os Camarões e o Togo e, na África Austral, a Namíbia, que nessa época se chamava o Sudoeste Africano. E assim desaparece completamente a História colonial dos territórios colonizados pelos alemães. O Ruanda torna-se assim um território belga. Relativamente a muitos outros países africanos, a singularidade deste caso reside no facto de que, quando a Bélgica herda o Ruanda, este não viria a ser uma colónia: a Sociedade das Nações confiou à Bélgica um mandato sobre o Ruanda e o Burúndi.
Canal: Qual é a diferença entre um mandato e uma colónia?
Prof. Kagabo: Uma colónia pertencia a uma metrópole, a uma potência colonial. Um país sob mandato era administrado pela Sociedade das Nações (NR: mais tarde convertida em Nações Unidas), que nasceu depois da Primeira Guerra Mundial. A Sociedade das Nações confia, pois, à Bélgica um mandato sobre o Ruanda. E, como a Bélgica também está presente na sua colónia no Congo, vai gerir os dois países, a partir do Congo, de forma análoga. É, pois, um reajustamento mas, mais uma vez, isto é teórico. No terreno, concretamente, é como o administrador de então. E é também nesta altura que começam a fabricar-se identidades imaginárias e é então que emergem as identidades tutsis, enquanto categorias sociais e políticas.
Canal: Mas emergem como?
Prof. Kagabo: Emergem porque, no séc. XIX, chegam a África os Burton, Speke, Stanley, ingleses e americanos atraídos pela dinâmica da exploração do continente. Porquê os ingleses? Porque tinham uma tradição desde a Índia, o Médio Oriente, onde já tinham toda essa experiência de exploração. Estes homens trazem consigo as crenças enraizadas na Europa da época segundo as quais os negros eram selvagens primitivos. É necessário lembrar que, nessa altura, segundo a Igreja Católica, tanto os negros, como as mulheres não tinham alma. Gente sem alma é primitiva, e isso podia justificar, tanto a anterior escravatura como, mais tarde, a colonização. Assim, quando se chega a esta região e se encontra povos organizados como Estado-Nação, eis o que se pensa: “Não é possível! As pessoas que conseguiram fazer isto não são selvagens. Devem ter vindo de outro lado”. E é nesse momento que se começa a construir uma mitologia das origens. Segundo tal visão, no antigo Reino do Buganda, actual Uganda, no Ruanda e no Burúndi as pessoas que construíram os Estados deveriam ter vindo de um modelo societal e civilizacional inexistente entre os pretos, entre os “negros”, para utilizar as expressões da época. Começa, pois, toda uma mitologia sobre as origens. Questiona-se: mas donde vieram eles? O único modelo explicativo aceitável para o espírito e a inteligência europeias era considerar que os tutsis eram uma grande nação e civilização. Conclui-se, assim, que as pessoas que dela fazem parte deviam vir do Nilo, uma vez que se considerava que a civilização não existia para “negros”.
Eis como se constrói uma mitologia das origens, de grande influência na ideologia colonial da época . Refira-se a esse respeito o livro extraordinário publicado em 1921 por Louis Frank, então ministro belga das colónias (mas que nada sabia das colónias). Importa recordar que a própria Bélgica foi constituída em 1830 e que na época ainda não tinha forjado a sua entidade enquanto nação, ainda sem grande experiência internacional, como a Espanha, Portugal, a Inglaterra ou a França. Numa palavra, a Bélgica era um país que não sabia colonizar, que não tinha um pensamento nem um projeto colonial. Ora, tudo o que o ministro belga tentou fazer no quadro da sua missão colonial foram tentativas vãs. Enfim, como se pedíssemos a um cozinheiro para operar um doente. Com efeito Louis Frank , no seu livro intitulado “Intruções aos colonizadores do Congo Belga e do Ruanda Urundi”, acreditando em homens de ciência mais sábios, cita um famoso antropólogo da época que afirma: “Há duas raças, uma ‘Nilótica’ e uma ‘Bantu’”. O que caracteriza a raça ‘Bantu’ é o estado de sonolência, assim, há que trabalhar com os ‘Nilóticos’”.
Eis como se arranja um esquema entre os tutsi nilóticos e os hutus bantus, com uma espécie de discriminação de tipo racista. Porquê de tipo racista? É bom recordar que, na época, o conceito-chave de História da Humanidade é o conceito de raça. A humanidade está dividida em categorias raciais, a raça caucasiana, a raça indo-europeia, a raça arménia, etc... Portanto esta representação conjuga-se com a convicção de que a raça nilótica é, de longe, superior e, por isso, tem que se trabalhar com esta raça que soube constituir um Estado. É assim que se chega à discriminação entre hutus e tutsis. Mais uma vez falo do ‘quiproquo’ porque, de início, havia alemães que pensavam colonizar, e ruandeses que não sabiam o que queriam os alemães. E os ruandeses não sabiam que os europeus pensavam em categorias raciais. Isso não mudava o seu modo de vida, as suas relações sociais, económicas, as suas culturas religiosas, isso nada mudava, e eles ignoravam tudo isso. Note-se que toda esta visão das coisas circulava em línguas europeias e em livros a que os ruandeses não têm acesso. Eles não sabiam... e tudo se construía assim.... Durante todo o período que vai até à Segunda Guerra Mundial, impõe-se um esquema explicativo antropológico, e o domínio da antropologia física impõe-se tanto na Europa como mesmo fora dela. É isso que permite que se institua o nazismo, consagrando a raça ariana como raça superior às outras. Assim, quando nos países europeus se ouve dizer que, no Ruanda ou no Burúndi, existem raças, isso não os choca porque se aceita que mesmo no seu país há raças diferentes. Tudo isto não é intelectualmente discutido, porque não há debate intelectual.
(*) Maître de Conférences na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Professor convidado na Université de Kibungo e na Université Libre de Kigali. Senador, no Ruanda, entre Setembro 2009 e Setembro 2011.
(Continua na próxima edição)
Canal de Moçambique – 09.04.2014
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segunda-feira, 14 de abril de 2014
“A colonização não começa na Conferência de Berlim”-Professor JOSÉ KAGABO, historiador ruandês
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